Google Scholar em risco: por que a academia precisa de um plano B

A gigante de tecnologia Google ocupa um espaço onipresente no nosso cotidiano: domina a busca na web, produz o navegador mais usado, comanda o ecossistema Android, organiza rotinas com Gmail,...

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A discussão sobre IA na ciência costuma girar em torno de modelos cada vez maiores e respostas cada vez mais “inteligentes”. Mas existe um elefante na sala: as máquinas estão se tornando leitoras ativas da literatura, e o que oferecemos a elas ainda é, em sua maioria, um PDF estático pensado para humanos. Se quisermos que a IA ajude de fato a descobrir conhecimento novo — em vez de reciclar o que já foi dito — precisamos entregar ciência em um formato que as máquinas consigam interpretar, verificar e conectar a dados. É essa a tese central do texto de Tim Vines no The Scholarly Kitchen, que propõe repensar formatos, qualidade e modelos de negócio para um mundo em que leitores-máquina não “querem” narrativa: querem estrutura confiável.

Há um desalinhamento de expectativas. Humanos apreciam contexto, cadência e argumentação. Sistemas de IA, por sua vez, trabalham melhor quando recebem hipóteses explícitas, condições experimentais delimitadas, dados vinculados e um mapa claro entre evidência e conclusão. O problema não é só de forma; é também de dieta informacional. Muito do que é mais robusto segue preso atrás de paywalls, enquanto volumes maiores — e por vezes menos rigorosos — estão abertos e, portanto, mais presentes nos conjuntos de treino. O risco é “ensinar” a IA com o que é mais disponível, não com o que é mais verdadeiro. Para editores e pesquisadores, o recado é direto: a qualidade e a estrutura do que publicamos passaram a influenciar não apenas a leitura humana, mas a própria capacidade da IA de raciocinar sobre a ciência.

Por que PDFs não bastam

Modelos de linguagem aprendem por médias: agregam padrões e estimam o próximo token provável. Essa lógica se sai razoavelmente bem em tarefas gerais, mas tropeça onde a ciência avança — nos outliers e nas quebras de paradigma. Quando o artigo científico é tratado apenas como texto corrido, as máquinas precisam “escavar” a estrutura lógica que está soterrada na retórica. Figuras e tabelas sintetizam, mas raramente expõem a trilha completa da hipótese às medidas, das medidas às inferências e das inferências às limitações. O resultado é uma leitura frágil: fácil de enviesar, difícil de auditar. Entregar PDFs como principal “alimento” para leitores-máquina é pedir que eles adivinhem o que poderíamos ter fornecido de forma explícita.

Como seria um artigo “pronto para IA”

A proposta não é abandonar a versão humana, mas complementá-la com um “pacote de conhecimento” modular. Em vez de um único arquivo, um conjunto de componentes: declarações de hipóteses (com condições e variáveis), resumos metodológicos padronizados, datasets com DOI e documentação, mapeamentos diretos entre cada afirmação e o(s) arquivo(s) de dados correspondente(s), além de limitações e incertezas codificadas. Imagine cada conclusão do artigo apontando, como se fossem âncoras, para linhas específicas de dados e scripts, com unidades, escalas e transformações registradas. Para máquinas, isso é ouro: permite comparar força de evidência entre estudos, reconciliar divergências e construir um quadro de conhecimento mais granular do que qualquer narrativa contínua oferece.

Um novo produto: assinaturas para leitores-máquina

Se há um novo público — agentes de IA corporativos e institucionais — faz sentido criar um produto para ele. Vines sugere um modelo de assinaturas para IA: a versão humana permaneceria aberta (ou no modelo atual), enquanto a versão “machine-ready” seria entregue em feeds estruturados, sob assinatura, para clientes que operam IAs próprias. Pense no caso concreto: uma farmacêutica assina um fluxo diariamente atualizado sobre doença de Parkinson; o agente de IA ingere hipóteses, métodos e dados, cruza com sua base interna e indica, quase em tempo real, pistas promissoras para P&D. Nesse contexto, atualidade, rastreabilidade e ausência de fraude deixam de ser benefícios difusos e viram requisitos contratuais.

Qualidade vira vantagem competitiva — e obrigação

Se um feed “contamina” o modelo do cliente com resultados espúrios, a confiança evapora. Por isso, o modelo de assinaturas para IA realinha incentivos: o valor do periódico passa a ser diretamente proporcional à capacidade de separar sinal de ruído e documentar claramente como cada afirmação se apoia em dados. A consequência prática é revisar políticas editoriais, fortalecer triagens e retirar do limbo o que costumava ser “compliance”: compartilhamento de dados, curadoria, documentação, versionamento e ligações persistentes passam a estar no centro do produto.

Dados abertos, mas utilizáveis

O elemento faltante costuma ser justamente o mais trabalhoso: dados bem curados, com contexto suficiente para serem reutilizados por máquinas e por humanos. A questão não é apenas abrir o dataset, e sim torná-lo legível, estável e auditável. O texto sugere que o próprio modelo de assinaturas pode financiar esse esforço: editores trabalhariam com autores para garantir compartilhamento e documentação adequados, com contrapartidas como redução de APCs ou mesmo participação em receita para quem entrega dados em alto padrão. O que antes era custo invisível pode se tornar parte explícita da proposta de valor.

Passos práticos para começar agora

Para editores, vale desenhar um “mínimo viável” de pacote de conhecimento por área, incluindo: hipóteses e condições testadas; checklist metodológico com vocabulário controlado; datasets em repositórios confiáveis com esquema e README; mapeamentos entre cada figura/tabela e os arquivos de dados; além de campos estruturados para limitações, incerteza e licenças de reuso por IA. No fluxo editorial, formularios inteligentes podem validar consistência básica (do tamanho de amostra à compatibilidade de unidades), enquanto diretrizes de revisão priorizam verificabilidade de dados e coerência entre evidência e conclusão. Para autores, um exercício-guia ajuda: “o que uma IA precisaria para reproduzir — ou refutar — minha conclusão sem ler minha Discussão?”. A resposta vira roteiro de submissão.

O papel das instituições e dos financiadores

Mudar só na “ponta” editorial não basta. Universidades, agências e avaliadores precisam reconhecer — de forma mensurável — o trabalho de curadoria de dados, documentação e abertura de código. Ao atrelar progressão na carreira e financiamento à entrega desses componentes, reduzimos o atrito na origem e facilitamos que periódicos recebam manuscritos mais “estruturáveis”. A infraestrutura também precisa acompanhar: ontologias setoriais, padrões semânticos e identificadores persistentes fazem diferença entre um feed “machine-ready” e um amontoado de metadados incompatíveis.

Riscos e trade-offs a encarar

Há efeitos colaterais possíveis. A complexidade de produzir conteúdos “prontos para IA” pode favorecer atores com mais escala e infraestrutura, concentrando mercado. Há dilemas de privacidade, consentimento e vieses embutidos nos dados, além do custo ambiental computacional. Transparência sobre o que entra no pipeline, trilhas de auditoria, políticas claras de correção e versionamento são essenciais para evitar que “monetizar dados abertos” acabe virando, na prática, um novo fechamento. Mesmo assim, os benefícios de alinhar forma, dados e propósito são grandes demais para ignorar.

Horizonte: raciocínio melhor exige conhecimento melhor

Os modelos de raciocínio evoluem rápido, mas o que falta não é apenas mais texto — é conhecimento estruturado sobre como o mundo funciona. Entregar ciência como um conjunto de peças conectáveis permite que a IA avalie força de evidência, reconheça outliers e proponha caminhos com menos ruído. Para editores, é uma chance de reforçar autoridade e criar novas receitas. Para pesquisadores, é um modo de tornar contribuições mais reutilizáveis. Para a sociedade, é a promessa de descobertas mais ágeis e explicáveis. A pergunta não é se as máquinas vão ler a ciência, mas o que queremos que aprendam quando o fizerem. Se entregarmos estrutura, contexto e dados confiáveis, teremos leitores-máquina que ampliam a inteligência coletiva; se insistirmos no “PDF por padrão”, continuaremos treinando sistemas no que é mais fácil capturar, não no que é mais rigoroso.

Fonte: Tim Vines - The Scholarly Kitchen


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