A adoção de taxas de processamento de artigos (APCs) virou um atalho tentador para revistas que buscam sustentabilidade. Mas atalho nem sempre é caminho. Um webinar recente coorganizado pela Budapest Open Access Initiative (BOAI) e pelo National Council of Rectors (CONARE) acendeu um alerta: onde os APCs entram, mudam os perfis de autoria, os temas e, sobretudo, a língua de publicação, com uma guinada para o inglês. Para editores e pesquisadores, a pergunta não é apenas como financiar o periódico, e sim que ciência queremos sustentar — local, inclusiva e multilíngue, ou globalizada às custas de excluir quem não pode pagar.
A boa notícia é que há alternativas reais e testadas no Sul Global. O encontro reuniu nomes centrais do ecossistema — Arianna Becerril García (Redalyc), Fhillipe de Freitas Campos (IBICT), Andrea Mora Campos (CONARE), Edna Montero (ABEC), Peter Suber (BOAI) e Andréa Vieira (CAPES) — sob moderação de Bianca Amaro, com interpretação simultânea em português, espanhol e inglês. O foco no Brasil ajudou a transformar o debate em roteiro prático para quem edita, avalia e publica ciência na região.
O que está em jogo
Quando uma revista sem cobrança migra para APC, não muda só o fluxo financeiro; mudam incentivos, escopo e público. A literatura que nasce do diálogo com problemas locais tende a ceder espaço a temas “globais”, mais citáveis e elegíveis a financiamento internacional. O resultado? Autores sem apoio institucional e regiões historicamente subfinanciadas ficam à margem. O conhecimento se descola do seu território e a diversidade linguística se encolhe.
Arianna Becerril García apresentou achados do Redalyc: 7% dos periódicos antes sem cobrança no índice começaram a adotar APCs, sobretudo para cobrir despesas básicas. Essa inflexão veio acompanhada de uma correlação com o aumento da publicação em inglês — sinal de que a sustentabilidade financeira via taxas pode empurrar a comunicação científica para fora das línguas e dos problemas locais. Trivializar APCs como “modelo de sustentabilidade” ignora efeitos sistêmicos. Governos, agências públicas e instituições têm responsabilidade de dar suporte para que editores não precisem cobrar.
Brasil em foco: financiamento público e avaliação com impacto social
Do lado brasileiro, Andréa Vieira destacou uma mudança de rota na CAPES desde 2023: sair do pagamento por acesso e investir em infraestrutura aberta por meio do SciELO. A agência também vem reduzindo o peso do fator de impacto na avaliação para abrir espaço a publicações com impacto social — um ajuste que realinha incentivos da pós-graduação com o interesse público. Hoje, cerca de 2% de um orçamento de US$ 100 milhões vai para fortalecer revistas sem cobrança, e a intenção é ampliar essa fatia em um programa dedicado.
Fhillipe de Freitas Campos retomou duas décadas de atuação do IBICT na construção de infraestrutura para formação e difusão científica. Entre as ações, o apoio histórico ao OJS e o Miguilim — diretório com mais de 5 mil periódicos brasileiros — mostram como políticas públicas e infraestrutura partilhada reduzem custos e elevam padrões editoriais sem transferir a conta para autores. O IBICT também avança na criação de um Diretório Brasileiro de Pareceristas Científicos e Técnicos, atacando um gargalo crônico: encontrar avaliadores qualificados e no tempo certo.
Edna Montero apresentou o trabalho da ABEC para profissionalizar a edição científica, do fluxo editorial à avaliação por pares, com uma trilha robusta de cursos, gestão, avaliação e certificações individualizadas. Esse investimento em gente — editores, pareceristas, gestores — é a antítese dos APCs como “solução rápida”: melhora qualidade, integridade e eficiência, e demonstra que sustentabilidade também se constrói por capacidade técnica e reconhecimento profissional.
Lições da Costa Rica: publicar como missão institucional
Andrea Mora Campos descreveu o modelo costa-riquenho: as faculdades contratam editores, e a instituição provê infraestrutura, criando um arranjo de longo prazo que outras universidades na América Central e no Caribe já replicam. Publicar deixa de ser custo variável e vira missão acadêmica — como biblioteca, extensão e ensino —, diluindo o impulso de transferir custos ao autor. Peter Suber somou propostas pragmáticas: ratear hospedagem de portais e integrar tarefas editoriais à carga de trabalho docente, reduzindo a dependência de taxas.
Riscos no horizonte e oportunidades de colaboração
O financiamento global da ciência pode encolher, pressionando mais revistas a adotar APCs. Por isso, o pano de fundo precisa ser cooperação: redes internacionais de portais, reciprocidade entre instituições e investimentos em bens públicos digitais. Um passo estratégico anunciado: IBICT e La Referencia trabalham em um identificador persistente gratuito para adoção regional — infraestrutura aberta que reduz custos de operação e integração.
A discussão deixou uma convicção: sustentabilidade não é sinônimo de cobrança. É desenho institucional, infraestrutura comum e políticas de avaliação que recompensam relevância social. Se a adoção indiscriminada de APCs acelera a “anglicização” e estreita a participação de quem menos pode pagar, então preservar o modelo latino-americano sem taxas não é nostalgia; é estratégia de futuro para uma ciência mais útil e plural. A decisão — de governos, universidades e editorias — é se queremos um ecossistema que cobra por pertencer ou que investe para incluir.
A íntegra do webinar está disponível gratuitamente no Youtube.